CONTO: Jeito pra que?



Olá, queridxs! O Desordem Natural é também um espaço de divulgação literária. Gosto muito de unir literatura com o cotidiano escolar. Este é um dos últimos que escrevi. Não deixe de dar sua opinião, ela vale muito. Caso se interesse em usar, é preciso entrar em contato. Boa leitura!





Jeito pra que?

Edhson Brandão

    Qualquer um que chegasse à classe do quarto ano bê, na sala oito perceberia a inquietude do franzino indivíduo que ocupava a segunda carteira da fileira próxima à porta. Seus olhos castanhos e semi-abertos provocavam um mistério sem igual por qualquer um, adulto, que o abordasse.
    Em sua mesa os lápis raspados com seu nome e a borracha mordida eram companheiras do caderno tilibra que, coitado, já penava logo no início do ano com dezenas de folhas arrancadas e muitas, mas muitas palavras escritas em um idioma ainda pouco conhecido pela humanidade pedagógica daquele lugar.
    A Professora Berenice, em sua boa vontade, vez e outra checava as artimanhas do garoto que, segundo as referências confiáveis das demais crianças e da mãe da garota loira dos cabelos crespos – que se dizia vizinha da família do garoto – que ele era do tipo que comia quieto. As merendeiras e o inspetor concordavam com tal fato, só para constar. Para Berenice “comer quieto” era o modo de dizer mineiro para quem apronta enquanto os outros não olham. Para o menino que uma vez foi pego de surpresa com essa exclamação num estridente grito (“Pensa que eu não sei que você come quieto, rapaz?”) comer quieto era colocar comida na boca sem falar nada enquanto não raspasse o prato. Mas ninguém sabia.
    Seus casos eram corridos na escola e a frase que sua mãe mais ouvia era aquela do não sei mais o que fazer e outras variantes pouco criativas. A mãe acatava o que diziam de seu filho na escola, sempre conversava com o garoto quando havia novidade do caderninho de recados e dependendo do caso, como na vez em que deixou uma caneta estourar a tinta por dentro da camiseta de um dos garotos do terceiro ano durante o recreio, o coro comia. Não tem jeito esse menino. Jeito pra quê?, uma vez ele tentou pensar.
    Outra manhã quando ouviu pela enésima quadragésima quinta vez esta frase decidiu parar para pensar; mas parou no dia seguinte. Se os adultos soubessem disso, teriam comemorado. Parou enquanto voltava para casa depois de um dia atípico na escola: havia feito toda a lição. Jeito, jeito, jeito. Com gê ou jota? Não interessava. Observou seu andar e depois comparou com os demais que passavam: pé direito na frente levemente aberto para a direita com uma pisada mais firme, pé esquerdo tomava a dianteira um pouco mais fechado que o irmão mas de pisada mais suave. Não mancava. Ali analisou e constatou. Chegando em casa, milagre, pediu para secar a louça do almoço pra mãe. Não, você vai quebrar tudo. Aborrecido, saiu pra rua pra brincar. Tentou jogar bola, entrar no time dos meninos grandes. Não, nossos times já estão todos certos. Você fica de próximo. Desistiu e foi tentar ver o que as meninas faziam. Nada de meninas na rua. Sentou então na sarjeta de uma rua próxima às lojinhas do bairro e viu o Seu Valdo carregando algumas caixas de garrafas para dentro de seu bar. Ofereceu ajuda. O velho disse que sim.
    Foi assim que organizou as dezenas de garrafas de cerveja separadas por formato, tamanho e marca nas caixas amarelas, laranjas e vermelhas encardidas. Depois deu uma força com Seu Valdo pra consertar a mesa de sinuca que estava bamba. Faltavam dois dedos no calço, mediu sozinho e foi dizer ao dono do bar. Mais tarde comeu dois saquinhos de batatas ricas em sódio como gratidão pelo trabalho feito. Descontente, pediu ainda que Seu Valdo o deixasse organizar e receber o dinheiro das vendas de quando o bar abrisse. O senhor ficou preocupado porque bar não era lugar pra criança, mas deixou ao ver os olhos arregalados do garoto numa euforia pouco comentada por outros. Foi assim à tarde: Seu Valdo servia, o menino recebia. Contava o dinheiro que o cliente deixava no balcão e devolvia o troco. Se não tinha o suficiente pedia trocado ao freguês. Quem não tinha, ele corria pra trocar na quitanda que ficava ali pertinho na esquina. Em caso de poucos centavos faltantes, compensava com balinhas de canela.
    Quase as sete ouviu os berros de sua mãe, despediu-se do velho e tomou o rumo de casa com uma tubaína e uns doces de abóbora como pagamento. Em casa pouco disse e na escola, menos ainda.
    Uma semana depois, Seu Valdo cruzou com o pequeno acompanhado de sua mãe e não esperou em abrir o sorriso e dizer: Já viu como seu filho conta o dinheiro? Foi um bom caixa no meu bar. Esse aí tem jeito, viu?”. A mãe agradeceu com um piscar profundo de olhos e o menino… Ah, ele nunca mais esqueceu essa história.

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